Ócio leontínico: anatomia de um ser pulsante



Se um dia alguém se debruçar sobre minha inexpressiva poesia, observará que no fundo ela não passa de um pastiche, uma imitação servil do estilo; tentativa arrogante de republicar a maneira de ver o mundo, redesenhar as cidades íntimas. Não há poesia em mim sem a permissão de Raimundo Leontino Filho e sua exuberante apreensão da luminosidade do mundo por veio da palavra. Jamais escreveria se não o tivesse para perseguir, se não buscasse, em minha distância e na pequena frecha que nos aproxima, desvendar o espelho que lhe irradia ao mundo.

Desde 1999, após última reedição de Cidade Íntima (1987), Leontino estava guardado. Entregue a outros mundos. À poesia formando uma prosa lírica, a prefácios, ensaios, ilusões adjetivas limitadas a mostrar o outro. 19 anos depois, é do exílio que ele grita e de lá continua exatamente de onde parou. Exatamente ali, no ponto em que sua íntima cidade interior deu o seu ponto final.

Anatomia do Ócio não é apenas um livro, mas a sequência de uma vida inteira, a extensão de minhas vontades e a confirmação de que um poeta é um ser sublime “rabisco de Deus na efemeridade dos minerais”.

Se em Cidade Íntima Leontino concluiu a mais perfeita descrição da lua, na Anatomia do Ócio ele decidiu nos explicar a literariedade da água.

Estanque
Dorme enquanto pode
[...]
Dentro do poço
Uma onda
[...]
Um salto acorda o som

O som da palavra leontínica é uma trombeta de Jericó. Soa estraçalhando as vidraças. Recompõe a capacidade sinestésica da alma. Uma única palavra diz o mundo e desautoriza os dicionários.

Desde que se aposentou, Leontino está recluso, distante do mundo, enraizando em sua aldeia. É possível encontrá-lo, rir de sua risada frouxa, sentir o afago de sua gentileza, a força de sua verdade tribal. Mas somente lendo é possível acessar sua presença; somente lendo seus pensamentos é que conseguimos identificar a transpiração. Observar “a leitura e seu duplo/ seres enigmáticos/ lâminas que ferem”. Sua crisálida, marcando o sentido da caminhada, sua pintura rupestre confirmando sua paisagem.

Seus enigmas estão dados à decifração. A sua ausência do mundo – o mundo em que não o vemos – é direcionada e posta. “importante e interessante é o aqui/ com aparência de voo/ no esplendor da paciência [...] Interessa o pedaço exagero do pouco que se vê [...] Qualquer exílio é treva”.

“Preso ali, o perfil/ da insônia/ que não passa [...] Espanto único/ da manhã/ que avança/ grudado na chave/ da minha carne/ insone.” A dor está na compreensão, a palavra é apenas um veículo. “A asa comprida das horas/ fossiliza/ o espanto inútil das coisas.”

O estilo leontínico é claro, embora sua poesia aprofunde o instante. O costume de docilizar o verso petrificado pela formalidade da frase. O respeito ao poema lançado em vida com lapidação e cuidado. Uma peça frágil e bem ornado. A poesia de Leontino veste traje completo, não se desvia da conduta formal da gramática, porque o que precisa ser rebelde está na compreensão, na rebelião do outro. James Dean, Zimmerman.

A antecipação do adjunto adnominal para valorizar o substantivo, dá à palavra final maior expressão e inspira-me em Leontino a olhar o pôr do sol. “Desesperadas ilusões/ íntima visão do silêncio”, inversão da ordem direta sem perder a beleza natural. Uma oração em cada poema, um sopro de Rilke, a tessitura de Raduan Nassar. Nada é longo na expressão leontínica, mas cada palavra descostura uma infinidade de objetos.

Dividido em cinco partes, o livro é um diálogo explosivo. A memória em combustão. Pedaços imensos caindo de um céu azul sem nuvens. Para amigos e admirados, saliência de afetos. Para Orides Fontela, três músculos e um nó. “Seios imensos/ sangram/ o desvario/ da inútil poesia/ a vida/ no rés do chão [...] O trevo/ hora sim hora não/ lambendo/ os seios/ da criação”. Para Sérgio Campos os interlúdios: “Toda memória é síntese inconclusa, infância pela metade/ Toda memória é um pai-morto/ perambulando pela nossa lembrança.”

Por todos os poemas um desejo triste de compreender a vida, isso dito de maneira inversa. No ego da limitação, no toque da impossibilidade. “O homem desvenda o espelho”. Tudo no poema pode, menos o desvio de conduta que tornará a imagem descalça, pois sem beleza o poema pode virar qualquer coisa, até poema, mas sem efeito para o desejo insaciável de sermos harmônicos e civilizados. “Pode a palavra/ procurar aromas/ interrogar genocídios/ incendiar sossegos/ misturar verdades/ dividir carícias/ ostentar histerias/ fundar noites/ dilacerar auroras// cada vez mais/ a ela/ o poder.”

Mas a força está em quem a domina, a palavra dita é uma pedra lançada que pode reconstruir paisagens ou ferir de morte alguém. Por isso os livros nos livram de lançá-las à esmo e a poesia serve de oxigênio aos pulmões da compreensão do mundo. Leontino sabe disso e nos avisa de seu ócio que “uma queixa de mitos esconde as trevas de raquíticos excessos” e que “pequeno é o mar para uma vida tão curta”. A vida é breve, Leontino não.

Anatomia da anatomia
Anatomia do Ócio, de Leontino Filho, é uma edição da Arc Edições, em parceria com a Queima Bucha e Sol Negro. Está disponível apenas junto ao autor através do e-mail: leontinofilho@uol.com.br ou no telefone: 84-3314-0276.

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